Entrevista | Adultização da infância: “A criança não é um mini adulto”
Com Raquel Romano, psicóloga, pedagoga e psicanalista
Folha do Batel – Quando falamos em adultização da infância, do que exatamente estamos tratando?
Raquel Romano – É o processo de acelerar o crescimento das crianças, tratá-las como “mini adultos” e exigir delas capacidades que ainda não podem sustentar. Isso aparece em vários campos: nas escolas, nas redes sociais, na mídia, no consumo e até nas famílias. Quando exigimos da criança algo para o qual ela não está pronta, fragilizamos sua identidade e comprometemos seu desenvolvimento.
Folha do Batel – Esse tema ganhou força nas redes sociais após a denúncia do influenciador Felca. A internet é mesmo o principal palco desse fenômeno?
Raquel – Sem dúvida. As redes sociais são um espaço do adulto. Quando a criança entra nesse ambiente, passa a imitar gestos, roupas e posturas sem compreender o que significa. Ela constrói uma identidade de fachada, moldada pelo olhar dos outros. Isso abre caminho para a hipersexualização precoce, que é uma das formas mais graves de adultização.
Folha do Batel – Qual a diferença entre hipersexualização precoce e educação sexual?
Raquel – Essa distinção é fundamental. Educação sexual é preparar pedagogicamente a criança para compreender, no futuro, as relações de forma saudável. Já a sexualização precoce é quando se exigem dela comportamentos, roupas ou discursos adultos, principalmente ligados ao sexo. É violência simbólica contra a infância, porque sexo é coisa de adulto.
Folha do Batel – A senhora também aponta a medicalização como forma de adultização. De que maneira isso ocorre?
Raquel – Hoje vivemos a pressa do comprimido. Consultas rápidas e diagnósticos apressados transformam comportamentos infantis em doenças. O Brasil já é o segundo maior consumidor de Ritalina do mundo, e o uso cresceu mais de 300% em uma década. Em muitas salas de aula, quatro, seis ou até oito crianças estão medicadas. É como se o adulto não suportasse o processo natural de amadurecimento e quisesse, com um remédio, transformar a criança em adulto.
Folha do Batel – Essa lógica de pressa aparece também na educação?
Raquel – Sim. A alfabetização precoce é um exemplo claro. Imagine dar uma bicicleta sem rodinhas para uma criança de quatro anos. A frustração fica gravada. Ou oferecer carne a um bebê de oito meses — ele não consegue mastigar, e isso comunica impotência. Ao antecipar etapas, geramos ansiedade, baixa autoestima e sintomas emocionais ou físicos.
Folha do Batel – E qual seria o antídoto contra essa pressa?
Raquel – O brincar. O tempo ocioso é vital. É nele que a criança inventa, experimenta e descobre quem é. Sem espaço para o lúdico, ela cai na rotina adulta, marcada por excesso de atividades e ansiedade. Uma rotina equilibrada deve incluir estudo, sono, alimentação, mas também espaço para brincar livremente
Folha do Batel – A publicidade e a mídia também reforçam essa cultura do “mini adulto”?
Raquel – Muito. A criança é induzida a consumir sem discernimento. O quarto fica cheio de brinquedos que não satisfazem, porque o que falta não são objetos, e sim experiências: museus, teatros, natureza, encontros sociais. Além disso, a moda e as redes estimulam roupas, maquiagens e poses adultas. Quando tratamos a criança como adulto pequeno, negamos a ela o direito de viver cada fase em sua plenitude.
Folha do Batel – Quais são os impactos emocionais dessa adultização precoce?
Raquel – São profundos: depressão, ansiedade, irritabilidade, dificuldades nas relações e baixa autoestima. Muitas crianças passam a acreditar que não são capazes, porque foram cobradas em etapas para as quais não estavam prontas.
Folha do Batel – Como família, escola e sociedade podem atuar para proteger a infância?
Raquel – A família precisa oferecer sono adequado, alimentação de qualidade, rotina estável, limites claros para telas e presença real — ainda que em pouco tempo. A escola deve superar o modelo puramente cognitivo e se tornar uma “escola das relações”, como as experiências de Reggio Emilia e da Escola da Ponte, em Portugal. Já a sociedade deve regulamentar a publicidade infantil, oferecer projetos culturais e esportivos e garantir equipes multiprofissionais em escolas e unidades de saúde.
Folha do Batel – O ECA Digital, aprovado recentemente, ajuda a enfrentar esse desafio?
Raquel – É um avanço, mas ainda insuficiente. O problema é muito maior. Precisamos de campanhas sobre sono, telas, alimentação, além de uma mudança cultural profunda.
Folha do Batel – Para encerrar: o que significa resgatar a infância?
Raquel – Significa resgatar a humanidade em todos nós. Uma sociedade que respeita o tempo da criança é mais saudável, mais criativa e mais justa. Escuta sua criança !!!
Raquel Romano CRP 08/30825 – PR- Pedagoga, psicóloga e psicanalista em formação contínua há mais de vinte anos.
Agendamentos :
Contato: 41996994334
Instagram @psi.raquelromano https://raquelromanopsicanalise.com.br/